Os Princípios das Boas Práticas de Laboratório (BPL): conceito, origem e importância para o desenvolvimento de novos medicamentos

A realização de testes de segurança em conformidade com os princípios das BPL é a principal exigência regulatória para a etapa não-clínica.

BLOG CIENP

Guilherme P. Fadanni, PhD, Tiago S. Roque, João B. Calixto, PhD

8/6/20245 min read

Ao longo da história da indústria farmacêutica, são muitos os casos de retirada de medicamentos do mercado em razão de efeitos indesejados e previamente desconhecidos. Exemplos de grande repercussão e importância incluem o elixir sulfanilamida, responsável pelo "desastre da sulfanilamida" em 1937, e a talidomida, cujo uso indiscriminado causou anomalias congênitas em pelo menos 10 mil nascidos entre os anos 1957 e 1962. Quanto ao primeiro caso, o incidente foi um catalizador da aprovação do Federal Food, Drug and Cosmetic Act (FDCA) de 1938, um conjunto de leis que autorizou a Food and Drug Administration (FDA) a supervisionar e regulamentar a produção, venda e distribuição de alimentos, medicamentos, dispositivos médicos e cosméticos nos EUA. Já para a talidomida, o caso resultou na importante emenda Kefauver-Harris (1962) ao FDCA, e posteriormente na introdução das "Diretrizes para Estudos de Reprodução para Avaliação de Segurança de Medicamentos para Uso Humano", em 1966. Embora trágicos, incidentes como o da sulfanilamida e o da talidomida têm um efeito benéfico: servem como um pontapé a avanços regulatórios que, além de garantir maior segurança a quem utiliza os medicamentos, reduzem as taxas de atrito durante estudos clínicos e o risco de eventual retirada do mercado após o registro.

Considerada a evolução no entendimento regulatório e a resposta a incidentes como os citados acima, a caracterização da segurança de novos ativos farmacêuticos atualmente requer que múltiplos testes sejam realizados. Estes incluem ensaios com animais de laboratório (geralmente ratos, camundongos, minipigs, cães e/ou primatas não-humanos), além de estudos em culturas de células e outros sistemas não-celulares. Contudo, desses requerimentos surge um segundo desafio: não basta somente exigir a realização de testes de segurança, é também imperativo garantir que esses estudos sejam executados com qualidade, rigor e reprodutibilidade suficientes. Por isso, ainda na década de 70, criaram-se os primeiros esforços para estabelecimento dos "Princípios das Boas Práticas de Laboratório", ou BPL.

O conceito de BPL surgiu formalmente a partir de questionamentos sobre a confiabilidade dos dados de segurança não-clínica apresentados à FDA com a finalidade de registro de novos medicamentos. Naquela época, inspeções realizadas em laboratórios revelaram:

  • Planejamento inadequado e falhas na execução dos estudos;

  • Documentação insuficiente de métodos e resultados, além de dados fraudulentos (como a substituição de animais mortos durante um estudo por outros que não foram adequadamente tratados com o item de teste);

  • Uso de dados hematológicos de outros estudos como grupo controle;

  • Omissão de dados relativos a observações macroscópicas na necrópsia;

  • Alterações nos dados originais para "ajustar os resultados" para o relatório final;

Assim, sob forte debate político e com o objetivo de garantir que os relatórios submetidos à agência refletissem de forma completa e confiável os resultados de estudos realizados, foram criados entre 1976 e 1979 os critérios e exigências das BPL. Alguns anos depois, em 1981, a utilização desses princípios foi recomendada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), resultando na adoção das BPL como uma conformidade obrigatória para estudos não-clínicos submetidos às principais agências regulatórias em todo o mundo. Exemplos contemporâneos que descrevem essa obrigatoriedade incluem o guia M3 (R2) do ICH e o guia da ANVISA que tratam de estudos não-clínicos para o desenvolvimento de medicamentos. Mas, afinal, o que significa ter conformidade com as BPL?

Segundo a definição, os princípios das BPL são um sistema de qualidade que abrange o processo organizacional e as condições nas quais estudos não-clínicos de segurança à saúde humana e ao meio ambiente são planejados, desenvolvidos, monitorados, registrados, arquivados e relatados. Na prática, ter conformidade com as BPL significa ter reconhecida capacidade de seguir uma série de critérios de qualidade e rastreabilidade dos dados gerados durante a pesquisa. Ainda, é importante destacar que esse reconhecimento é válido internacionalmente e inclui atualmente todos os 38 membros e 7 não-membros da OCDE pelo acordo de "Aceitação Mútua de Dados" (do inglês Mutual Acceptance of Data, ou MAD). Por esse motivo, um estudo realizado no Brasil que tenha a conformidade BPL reconhecida pelo órgão nacional responsável também terá aceita sua conformidade por agências regulatórias estrangeiras, como por exemplo a já citada FDA dos EUA e a European Medicines Agency (EMA) da União Europeia. No Brasil, a autoridade responsável pelo reconhecimento e monitoramento dos princípios das BPL é a Coordenação Geral de Acreditação (CGCRE), do INMETRO. Está é considerada a Autoridade Brasileira de Monitoramento da Conformidade aos Princípios das BPL, integrando o Programa Brasileiro de Monitoramento BPL junto à OCDE.

Um ponto importante a destacar é que o reconhecimento em BPL é válido para testes realizados por uma Instalação de Teste (IT) em áreas de estudos específicas e com finalidade específica, e não para a IT como um todo. Por isso, não é acurado referir-se a uma determinada IT como "uma instituição BPL". Como um exemplo, o CIEnP obteve seu reconhecimento em BPL em 2017, sendo que na ocasião estavam inclusos neste reconhecimento somente dois testes de genotoxicidade (teste de mutação reversa em linhagens de Salmonella e teste in vivo de micronúcleos em eritrócitos de mamíferos). Posteriormente, em 2018, o escopo foi estendido para incluir os testes de toxicologia oral em doses repetidas (28, 90 e 180 dias), e em 2022 para incluir dois testes de Farmacologia de Segurança, sendo o Teste de Irwin (segurança do sistema nervoso central) e pletismografia de corpo inteiro (segurança do sistema respiratório). Atualmente, em agosto de 2024, o reconhecimento em BPL do CIEnP aplica-se a 10 ensaios diferentes, que além dos citados anteriormente, incluem toxicidade parenteral aguda e subcrônica e também toxicologia intranasal, aguda e subcrônica. Cabe ressaltar que o escopo de reconhecimento dos testes supracitados é aplicável a itens de teste classificados como "agrotóxicos, seus componentes e afins", "produtos farmacêuticos", "cosméticos", "aditivos de alimentos", "aditivos para rações", "medicamentos veterinários", "produtos químicos industriais" e "produtos para saúde". Desde o primeiro registro, em 2017, o CIEnP já passou por 4 inspeções da DICLA/CGCRE, todas elas bem-sucedidas.

Por fim, quando falamos de desenvolvimento não-clinico de medicamentos, vale esclarecer que alguns ensaios não estão sujeitos à obrigatoriedade de reconhecimento em BPL no entendimento regulatório atual, como os ensaios de eficácia, de farmacocinética, e de interação medicamentosa, por exemplo. Embora apliquem-se os mesmos conceitos éticos a estes casos, a conformidade em BPL somente é exigida para os testes definitivos de segurança.

Referências:

FDA. Sulfanilamide Disaster. FDA Consumer Magazine. 1981. Disponível em: https://www.fda.gov/files/about%20fda/published/The-Sulfanilamide-Disaster.pdf

Kingsland J. How the thalidomide scandal led to safer drugs. MedicalNewsToday, 2020. Disponível em: https://www.medicalnewstoday.com/articles/how-the-thalidomide-scandal-led-to-safer-drugs

Lam C, Patel P. Food, Drug, and Cosmetic Act. [Updated 2023 Jul 31]. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK585046/

FDA. Kefauver-Harris Amendments Revolutionized Drug Development. FDA Consumer Health Information. Disponível em: https://www.gvsu.edu/cms4/asset/F51281F0-00AF-E25A-5BF632E8D4A243C7/kefauver-harris_amendments.fda.thalidomide.pdf

Andrade et al. Non-clinical studies in the process of new drug development – Part II: Good laboratory practice, metabolism, pharmacokinetics, safety and dose translation to clinical studies. Brazilian Journal of Medical and Biological Research, v. 49, n. 12. 2016. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5188860/pdf/1414-431X-bjmbr-1414-431X20165646.pdf

INMETRO - https://www.gov.br/inmetro/pt-br/assuntos/monitoramento-de-boas-praticas-de-laboratorio